Intuição

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Deve ser uma sensação trivial da chegada a um porto quando já dominamos as técnicas de ancoragem. Mas é boa e só quero que ela continue. A chegada à especialização no tema da tese tem mais de intuição do que de ciência. Melhor, a parte científica concretiza-se na capacidade de intuir o caminho a seguir. Aconteceu esta semana duas vezes, como se, por magia, eu adivinhasse o que iria encontrar.

Num dos últimos livros publicados por Hans Ulrich Gumbrecht, que mandei vir num ímpeto algo irresponsável, pelo preço absurdo a que ele se vendia, aparece sem que eu pudesse saber, completamente – ou não – desfasada do tema principal, a exata relação – aparentemente opaca e cuja transparência advirá da minha tese de doutoramento – entre o pós-guerra nos países beligerantes e Portugal em termos de espírito sócio-cultural. Gumbrecht apresenta como prova da sua intuição uma fotografia de uma família portuguesa que ele comprou numa feira da ladra lisboeta em forma de postal, que data de 1948. A intuição de Gumbrecht é a minha resposta científica.

Segunda intuição. Uma busca curiosa pela obra de Natália Correia indica-me um título intrigante: Descobri que era europeia. Data: 1951. Primeira página: a birra burguesa de Natália no aeroporto de Lisboa que lhe lembra Dachau ou Buchenwald.

A semana está ganha.

(na foto, Natália Correia, cujo Coito do Morgado ficou para a história da política portuguesa)

Povo de ratazanas

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“No pino do verão de 1943, durante uma persistente vaga de calor, a Royal Air Force, apoiada pela 8ª Esquadrilha americana, desencadeou uma série de ataques a Hamburgo. O objeto desta ação conhecida como «Operação Gomorra» foi arrasar e reduzir a cinzas o mais possível a cidade. (…) Bairros residenciais, uma rede de ruas de uns 200 quilómetros de extensão, ficaram totalmente destruídos. Por toda a parte havia cadáveres horrivelmente desfigurados. Em muitos deles luziam ainda chamas de fósforo azuladas, outros estavam queimados com uma cor castanha ou roxa e reduzidos a um terço do seu tamanho normal. Jaziam dobrados em poças da sua própria gordura derretida, por vezes já em parte solidificada. Nos dias que se seguiram, o interior da zona de morte foi interditado e quando as brigadas de condenados e de internados nos campos puderam iniciar a limpeza, em agosto, após o arrefecimento dos escombros, foram encontrar pessoas ainda sentadas à mesa ou encostadas às paredes, vencidas pelo gás monóxido, e noutros sítios carne e ossos aos pedaços ou montes de corpos cozidos na água a ferver que jorrara de caldeiras rebentadas. Outros ainda tinham sido a tal ponto calcinados e reduzidos a cinzas, num braseiro de mil graus ou mais, que foi possível retirar os restos mortais de famílias com vários membros em cestos da roupa.

“O êxodo dos sobreviventes de Hamburgo iniciara-se ainda na própria noite do ataque. (…) Os fugitivos, cujo número ascendia a um milhão e um quarto, dispersaram-se até aos confins mais extremos do Reich. (…) Böll viria a sugerir mais tarde que estas experiências de desenraizamento coletivo estão na origem do gosto pelas viagens da República Federal, esse sentimento de não ser capaz de permanecer num sítio, de estar sempre a querer mudar. (…)

“Abstraindo do comportamento transtornado das próprias pessoas, a alteração mais evidente da ordem natural das cidades nas semanas a seguir a um ataque devastador foi sem dúvidas o súbito e descomunal aumento de criaturas parasitas que medravam nos cadáveres por sepultar. A notória escassez de comentários e observações relativos ao facto explica-se pela tácita instauração de um tabu, bem compreensível se pensarmos que os alemães, que se tinham proposto sanear e higienizar a Europa, se viam agora a braços com o temor crescente de, afinal, serem eles o povo de ratazanas.”

(W.G. Sebald, História Natural da Destruição, Quetzal, 2017, pp. 35-42)

Estratégia guerreira

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“Basta ver como Camilo usava a língua portuguesa para ficarmos informados sobre a sua vontade de poder, de conquistar a atenção, a fama e alma da Praça. Isso acontece com o espírito que é ávido porque é extremamente sobrecarregado de talentos. Aconteceu com Shakespeare, por exemplo. A maneira como dispõe as frases, como escolhe e arremessa as palavras, tem muito duma estratégia guerreira. Utiliza o alfabeto como balas e os versos como trincheiras. Julieta fala um tom acima da sua estatura feminina; Hamlet fala para a posteridade e não para a sua pequena corte de intrigantes.”

(Agustina Bessa-Luís, Fanny Owen, Relógio D’Água, p. 107)

A vida de um homem

Rui Tavares, numa entrevista sobre o seu último livro (sobre o qual escrevi aqui), conta uma história deliciosa sobre o trabalho do historiador e o interesse alargado pelo objeto de estudo, numa perspetiva que partilho e ponho em prática enquanto académico: nada do que se descobre é perda de tempo; muito do que se descobre não será iluminado por nós:

“E um dia dou de caras com uma ficha que diz Domingos Álvares, nascido na Costa da Mina, preso por feitiçaria, pacto com o diabo, etc. Pedi o processo e era um processo de 500 páginas, que contava a história de um homem nascido no atual Gana, escravizado aos nove anos, que tinha sido levado dali para o Recife e do Recife tinha sido levado para o Rio de Janeiro para ser vendido como escravo. A meio do caminho, o barco dele parou porque não havia vento. O capitão do barco decidiu perguntar aos escravos porque é que aquilo estava a acontecer e eles disseram-lhe que era por culpa de um escravo que tinha um colar com umas bolas de madeira que era feiticeiro. Esse escravo foi torturado, o colar foi queimado, voltou a haver vento, o barco voltou a navegar e quando chegaram ao Rio de Janeiro o escravo foi vendido por um preço superior porque era feiticeiro. Depois de ter passado por várias famílias, curou a mulher africana de um português do Rio de Janeiro e foi-lhe dada a liberdade. Tornou-se um curandeiro de tal sucesso que, a certa altura, chamou a atenção do bispo do Rio de Janeiro e quando houve uma visitação de inquisidores ao Rio, ele foi denunciado e veio para Lisboa onde esteve preso nos cárceres da Inquisição. Depois foi solto e mandado para Castro Marim, que era o chamado «couto de homiziados», ou seja, um sítio para onde iam os degredados. A certa altura, fugiu e andou por todo o Algarve a fazer curas, feitiçarias. Zanga-se com alguém, é denunciado em Portimão e é apanhado pela Inquisição, neste caso a de Évora, o que levou a que muito depois eu tivesse encontrado este processo de 500 páginas. Ou seja, temos um processo feito com intuitos repressivos mas que, ao mesmo tempo, nos revela imensas coisas sobre a vida daquele homem. Quando li aquele documento jurei para mim próprio que um dia iria escrever a história do Domingos Álvares. Um dia, durante o meu mandato no Parlamento Europeu, entre 2009 e 2014, chego ao hotel em Estrasburgo e encontro uma coisa num site académico com uma entrevista de um professor da Carolina do Norte acerca do seu livro sobre um escravo no Rio de Janeiro e em Portugal e penso «este é o Domingos Álvares». Ele encontrou o documento 10 anos depois de eu o achar. Só que ele fez o livro e eu não. Chorei.

(Entrevista na Revista LER, verão 2018, nº150, pp. 22-34)

Uma marcha no vazio do eu

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“No primeiro plano do rosto, o fundo desvanece-se por completo. O que conduz a uma perda do mundo. A estética do primeiro plano reflete uma sociedade que se tornou, ela própria, uma sociedade do primeiro plano. O rosto dá a impressão de ter ficado apanhado em si mesmo, tornando-se autorreferencial. Deixa de ser um rosto que contenha mundo – ou seja, deixa de ser expressivo. O selfie é, exatamente, esse rosto vazio e inexpressivo. A dependência aditiva do selfie remete para o vazio interior do eu. Hoje, o eu é muito pobre em formas de expressão estáveis com as quais se pudesse identificar e que lhe concedessem uma identidade firme. Hoje nada tem consistência. Esta inconsistência repercute-se também no eu, desestabilizando-o e tornando-o inseguro. É precisamente esta insegurança, este temor por si mesmo, que conduz à dependência do selfie, a uma marcha no vazio do eu, que não encontra nunca sossego. Confrontado com o vazio interior, o sujeito do selfie tenta em vão produzir-se a si próprio. O selfie é o si-próprio em formas vazias. Estas reproduzem o vazio. O que gera a adição ao selfie não é um autoenamoramento ou uma vaidade narcísicos mas um vazio interior. Não há aqui um eu estável e narcísico que se ame a si mesmo. Encontramo-nos antes frente a um narcisismo negativo.”

(Byung-Chul Han, A Salvação do Belo, Relógio D’Água, 2016, p. 24)

Comunidade

Inspirado por e dedicado a Bruna Ferreira

As leituras para a tese fizeram-me enfrentar, nos últimos tempos, teoria literária à séria, e, pela primeira vez na vida, consigo apreender e sentir fazer parte de um discurso exclusivamente hermético, sociologicamente elitista, inevitavelmente fútil, humanamente prescindível. Entrar nesta comunidade custou e custa neurónios, tempo, reflexão sobre a própria biografia, sobre a cultura local, nacional e global que me dirige, sobre de onde se veio, de que âmbito sociológico, sob que circunstâncias políticas, ao contrário de que expectativas do ambiente circundante. Ter a mais ínfima sensação de pertencer a um espaço virtual para quem a presença dos maiores é natural e não resultante de tantos passos como os que descrevi, provoca uma sensação de vigor quase perigosa. De vontade revanchista de imposição do que chega tarde e discretamente ao espaço inútil mas estabelecido como destino, e que quer chegar chegando bagunçando a porra toda.

Bem no final do extraordinário Em Busca do Autor Perdido (1998), de Helena Buescu, esta cita María Zambrano num simples mas epifânico resumo da vontade de poder nietzscheana que acabo de concretizar como certo caminho de felicidade no meu estado eufórico atual. Descreve a propósito de uma “comunidade de escritor e público”:

“Comunidade de escritor e público que, contra o que primeiramente se crê, não se forma depois de o público ter lido a obra publicada, mas antes, no próprio acto de o escritor escrever a sua obra. É, então, ao tornar-se patente o segredo, que se cria esta comunidade do escritor com o seu público. O público existe antes de a obra ter sido ou não lida, existe desde o começo da obra, coexiste com ela e com o escritor enquanto tal. E somente chegarão a ter público, na realidade, aquelas obras que já o tiveram desde o princípio. E assim o escritor não precisa de fazer para si próprio questão da existência desse público, dado que existe com ele desde que começou a escrever.”

(Helena Carvalhão Buescu, Em Busca do Autor Perdido – Histórias, Concepções, Teorias, Cosmos, 1998, p. 76-77)

 

A inutilidade de Deus

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“Acredite-me, as religiões enganam-se desde o momento em que pregam moral e fulminam mandamentos. Deus não é necessário para criar a culpabilidade nem para castigar. Para isso bastam os nossos semelhantes, ajudados por nós próprios. O senhor falava-me do Juízo Final. Permita-me que ria respeitosamente. Eu espero-o a pé firme: conheci o que há de pior, que é o juízo dos homens. Para eles, nada de circunstâncias atenuantes, mesmo a boa intenção é considerada crime. Ouviu ao menos falar da cela dos escarros que um povo imaginou recentemente para provar que era o maior do mundo? Uma caixa de alvenaria onde o prisioneiro se mantém de pé, mas sem poder mexer-se. A sólida porta que o fecha na sua concha de cimento sobe apenas até à altura do queixo. Vê-se, pois, unicamente o seu rosto, sobre o qual todo o guarda que passa escarra abundantemente. O prisioneiro, entalado na cela, não se pode limpar, embora lhe seja permitido, isso é verdade, fechar os olhos. Pois bem, isto, meu caro, é uma invenção dos homens. Não precisaram de Deus para esta pequena obra-prima.”

(Albert Camus, A Queda, Livros do Brasil, 2015, p. 66)

 

Elogio da suspeição

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Rui Nunes, em registo dissonante das sensibilidades linguísticas e literárias da moda, no Ípsilon (16/11/2018):

“Quais são os escritores portugueses que falam do que se está a passar na Europa? Escrevem histórias. Histórias. Sofisticam histórias e não mantêm com a língua uma relação de suspeição, que é preciso manter. Eles utilizam a língua como se fosse um instrumento neutro. Mas não é. A língua tem uma história, e essa história está sempre a funcionar. Eu não quero que a língua me domine, quero ser eu a dominá-la. Eu não quero que seja ela a comandar-me, quero ser eu a comandá-la. A língua não é um dom de Deus; a língua é um instrumento. E quando eu ouço dizer ‘A língua é sagrada’, ou ouço falar do ‘respeito pela língua’, tenho medo. A língua não tem nada de sagrado, como uma enxada não tem nada de sagrado. Serve, a enxada, para eu cavar a terra; a língua serve para eu falar, para eu escrever, para eu comunicar. É um meio, um meio que às vezes surge quase como um fim; mas todas as vezes que a língua surge como um fim, é preciso suspeitar. Ela, realmente, é um meio, e é preciso reconduzi-la à condição de meio que ela é, não sacralizá-la. Portanto, todos os processos de contaminação da língua me fascinam. Quanto mais contaminada a língua for, mais plástica se torna, e menor poder tem. Realmente, parece que usam a língua como um meio, um meio para contar histórias, mas não: estão a ser utilizados pela língua. A língua é que sabe as histórias que quer que se conte. Porque a língua tem lá todas as histórias; foram estabelecidas ao longo dos séculos.

(…)

A minha escrita é o meu olhar. Não me interessam muito as histórias. (…) Quando leio um escritor, quero saber como ele vê. Que relação estabelece ele com a realidade. Eu acredito que cada pessoa estabelece uma relação única com a realidade. E é essa relação que me interessa, não é uma história inventada e depois sofisticada para ser diferente. Não. Aquilo que me fascina é o olhar único, que se manifesta na escrita de cada autor. O que acontece é que a maior parte do que se escreve não tem atrás um olhar único. Não é nada. Tem atrás um vazio. E isso perturba-me, por isso não leio.

(Ípsilon, 16/11/2018, pp. 24-26)

Nostalgia do homem de 33 anos

Não conheço o termo técnico, mas os “ecos” à anos 80 das vozes da Joana Espadinha e do Pir/Cassete Pirata levam-me para a infância nos anos 90. Escuto estas canções como se as tivesse escutado enquanto menino, como se elas voltassem agora apenas na minha memória, para que o inesperado homem de 33 anos quisesse, através delas, abraçar o assustadiço menino que não sonhara vir a ser o homem que é aquele que, com carinho, dele se recorda.